sexta-feira, 1 de julho de 2016

O sequestro, o golpe e a farsa

Como de costume, pouco depois das 8 da manhã, o jaguar do rico e poderoso empresário encostava em frente à barraca de frutas do único oriental da Vila. “Pare no oriental”, dizia ao motorista. Apressado, o empresário baixava o vidro da janela traseira, esticava o braço e recebia o embrulho que o aguardava erguido por lânguidas e frágeis mãos orientais. O carro arrancava enquanto aquele braço se recolhia. Da praça da pequena Vila, era possível avistar a cena já comum por quem passava pelo local. Em algum lugar do passado, alguém deve ter questionado as razões do recluso empresário. O que se observava em seguida era outro veículo, igualmente imponente, parando logo atrás; via-se baixar o vidro. Num gesto carregado de preocupação e certa gentileza, o oriental aproximava-se do carro e de lá, saíam algumas notas de dinheiro, que eram imediatamente guardadas no avental sujo e marcado por anos de longas jornadas de trabalho. Já de costas para o cantar dos pneus, o oriental contabilizava sua venda, deixando escapar um sorriso de satisfação no canto da boca. 


Esse teatro era encenado todos os dias, dia após dia. Mas houve um dia em que as cenas, meticulosamente ensaiadas ao longo de alguns anos, apresentariam certas alterações. Para os que frequentavam a praça da pequena Vila, localizada no alto das montanhas, cujas temperaturas estavam sempre no limite do suportável, era mais um dia daquele espetáculo. O jaguar, de cor preta, imponente, de vidros escurecidos, apresentaria lama nas rodas e em parte da sua lataria; poucos notariam tais detalhes, mas não escapariam aos olhos de quem sempre admirou a altivez daquele veículo de brilho constante. E não era período de chuvas, ou de neve. Ao se aproximar da banca de frutas do oriental, o vidro não baixou imediatamente; o embrulho, sempre erguido como um troféu demorou a chegar. Foram longos segundos até que o oriental, atrasado, como nunca antes, se aproximasse do carro. Avançou, ergueu o embrulho, mas o vidro não cedeu; ali, da praça, houve quem visse o reflexo do flácido e agora triste rosto que sumia distorcido enquanto o veículo disparava. O outro veículo, igualmente recheado de novos elementos em sua pintura tampouco parou. O vento soprava silencioso, e balançava o velho avental; o oriental, intrigado, contabilizava, dessa vez, ponteiros em seu pulso, enquanto o silêncio era quebrado pelo sino da igreja, que findava a oitava hora da manhã. O embrulho trazia sempre maçãs frescas; duas, dependendo da qualidade do fruto; um punhado de nozes, cuidadosamente descascadas e embrulhadas num papel pardo; exalava um aroma que a memória faria o favor de recuperar anos mais tarde. Amêndoas e outras sementes, além de açucaradas tâmaras, completavam a refeição. O pacote, após cruzar a janela de vidros escurecidos, repousava sempre no colo de uma criança de oito anos de idade; seu semblante era sereno. Seu rosto, moreno e angelical, ganhava contornos quase teatrais quando recebia aquela ceia; a curiosidade infantil o fazia abrir o pacote em busca de novidades. “Tâmaras! Vejamos... Mmm... Delícia vou guardar para a sobremesa! ” – Na verdade aquilo era um teatro. O infante, de dieta restritiva, devido a problemas estomacais, não podia deliciar-se com aquilo que a região oferecia; leite da melhor qualidade, chocolates finos; pães dos mais variados sabores, além de uma rica oferta de vinhos e cervejas, que completavam a culinária local. O menino, que vez ou outra fugia da dieta, pagava caro pelo desvio de conduta; sua peça era de um ato só.



O imponente jaguar cruzaria a cidade, não mais que 8 minutos, após deixar a barraca de frutas, para alcançar a escola da Vila. Fundada oito séculos antes, a instituição teria sido responsável pela formação intelectual de importantes pintores e escultores, reconhecidos por nações daquele e de outros continentes. Esculpida na base de uma grande rocha, a escola detinha de enormes muralhas, resistentes aos anos, e também à fúria de invasores. Local de refúgio dos moradores da cidadela, invadida uma dezena de vezes, serviu também de proteção aos nobres que ocupavam as grandes propriedades da época e por vezes, por monarcas que ousaram cruzar aqueles altos vales em busca de ar puro e gelado. Mantida por meio de polpudas contribuições dos empresários da região, as muralhas deixaram de abrigar nobres e plebeus em fuga, para levar educação aos abastados locais. Ao descer do veículo, o menino caminharia por um estreito corredor para alcançar o pórtico da muralha. Cercado por muros baixos, até mesmo para uma criança de oito anos, de um lado, era possível ver um largo vale, de árvores eternas; a leste e a oeste majestosas faias, ao norte, montanhas de picos cobertos por espessas nuvens de gelo. De outro, um jardim de rosas, e um jardineiro, idoso, de mãos trêmulas, sempre cultivando cada espaço daquele seu asilo de flores. Mesmo com a sonolência habitual, esse curto percurso era cumprido rapidamente, acompanhado por olhares atentos do interior dos veículos. De longe, o garoto era hipnotizado pelo olhar da tutora, que logo o envolveria com um terno abraço, perfumando as boas-vindas, tomando-lhe de suas mãos o embrulho. O aroma de alfazema enchia os seus pulmões, somando-se ao perfume dos cabelos, era capaz de sentir ainda a fragrância do amaciante de seu agasalho; o doce odor do couro de seus sapatos e o perfume indecifrável que brotava do interior daquele corpo feminino, após uma noite de intensa batalha e, por fim, gloriosa derrota para uma espada. 

Um vento cruel interrompia esse ato, e perfurava aquele corpinho miúdo do infante, enquanto cruzava o interior da muralha; ao aproximar-se da sala de aula, um silêncio perturbador o convidava a entrar. Sua professora, com um hálito estranhamente agradável de café e leite, lhe dava as boas-vindas; o rosto, moreno e angelical, ganhava contornos mais sinceros, diante do convite. Seus coleguinhas sacudiam seus corpinhos igualmente indefesos. Era o melhor lugar do mundo para estar naquele momento. 

Mas houve um dia em que a partir daquela curta caminhada, num estreito corredor cercado por muros baixos, não se via, de um lado, largos vales - as nuvens de gelo haviam descido as montanhas e dominaram a paisagem, - de outro, o asilo de rosas estava abandonado; restava apenas uma ferramenta fincada na terra úmida. Naquele dia não houve o hipnótico olhar da tutora; ela não estava lá. Tomou lugar à sonolência habitual, certa dose de apreensão. No meio do percurso notou estar sem o embrulho – diminuiu os passos e parou. Ergueu o queixo e ouviu oito estalidos às suas costas. Seu corpinho miúdo tremeu. Seus olhos arregalaram. E seu rosto jamais voltou a ser angelical. De dentro da muralha surgiram passos e o pórtico se abriu. A tutora, atrasada, empurrou a pesada madeira e correu em direção ao menino; já não havia ternura em seu abraço, tampouco a alfazema enchia seus pulmões; o sapato, agora sujo de lama, compunha o figurino daquele ato, meticulosamente ensaiado, cujas consequências durariam longos oito anos. 

 *** 
Como de costume, pouco depois das 8 da manhã, o jaguar, agora do filho do rico e poderoso empresário encostava-se a frente da barraca de frutas do oriental da Vila. Já não era preciso dizer nada ao motorista. Sem aquela habitual pressa, o jovem baixava o vidro da janela traseira, esticava os dois braços e recebia com gratidão o embrulho que o aguardava erguido pelas mesmas lânguidas e frágeis mãos orientais. O carro arrancava enquanto aqueles braços, já recolhidos, vasculhava o pacote em busca de novidades. Da praça da pequena Vila, era possível avistar a cena já comum por quem passava pelo local. Em algum lugar do passado, alguém deve ter questionado as similaridades com outras cenas muito comuns a essa. Não que se observava em seguida, outro veículo, igualmente imponente, parando logo atrás. Num gesto carregado de apreço, o oriental acompanhava com os olhos o carro partindo, enquanto uma de suas mãos apertava angustiadamente seu avental. Já de costas, ouviu o frear dos pneus, e aquele ruído de carro em marcha ré crescendo e, num súbito, parando à sua porta; do carro saltava um rapaz esguio, de pele morena, com um rosto que um dia foi angelical – entregou-lhe alguns trocados, ressentido pelo esquecimento; o oriental, deixando escapar um sorriso de satisfação no canto da boca, disse, após centenas de ensaios, cortes, cenas mal interpretadas por longos anos, o que precisava ser dito. Menino há coisas que você precisa entender. Mas há muito mais que você precisa descobrir. Com o queixo erguido, olhando fixamente para o rosto do oriental, testa franzida, e mandíbulas em movimento, desceu do veículo e percebeu o inédito. Em todos esses anos, nunca viu os olhos orientais, semicerrados e muitas rugas; seus dentes amarelados, seu pescoço velho e enrugado; seu avental manchado de todo tipo de cores; e surgiu um cheiro; um aroma que penetrou profundo e lentamente em sua memória, resgatando sensações já esquecidas. Poucos, que por ali passavam, notariam tais detalhes, mas não escapariam aos olhos de quem sempre admirou a altivez daquele veículo de brilho constante, que nunca havia parado na barraca de frutas do único oriental da Vila. Aquele aroma fez o jovem herdeiro de um rico e poderoso empresário entrar pela primeira vez naquele comércio. Passado o espanto do cenário oriental que mergulhava, o jovem apoiou-se no balcão; o aroma tomava conta do recinto, mas ele não podia identificar de onde ele vinha; eram muitos os cheiros; maças, pêssegos, ovos, hortaliças, amendoim torrado, nozes, amêndoas, tâmaras, grãos dos mais variados tipos, farinhas, temperos. Uma overdose de fragrâncias deixou o rapaz tonto, a ponto de fazê-lo repousar sua cabeça sobre os braços, apoiados no balcão. Sentiu o tal aroma enigmático brotar da madeira. Aspirou como se fosse o último ar que lhe restava. Que cheiro é esse? - exclamou. O cheiro da sua liberdade, retrucou o oriental. 

 *** 
Sente-se rapaz, sente-se. Disse o oriental enquanto baixava as portas do comércio, cujo barulho da pesada porta de ferro e suas engrenagens fez os pintinhos e galinhos que repousavam se sacudirem, espantando penas, alpistes e excrementos. Aquela cena e odores embrulhavam o ainda e sempre frágil estômago infante. Oitavo filho, do sétimo filho, meu caro. Essa é a lei. Oriunda de uma maldição universal. Há muitos séculos atrás, segundo os relatos dos mais antigos, o sétimo filho do sétimo filho, seria o Todo Poderoso, o profeta. Ou um Messias ou o Demônio. É dito que quando ele nasce detém de poderes infinitos que vão se aperfeiçoando ao longo do tempo, e tanto o bem quanto o mal tentariam controlá-lo. Mas quem é capaz de manipulá-lo? O mundo viveria em um tempo de paz e prosperidade enquanto ele estivesse vivo? Quem é capaz de responder esta pergunta? As trevas tomariam conta e enquanto ele estivesse vivo, a destruição e a desgraça seriam as contadoras de suas façanhas? Ou o tempo glorioso, a prosperidade e a bondade reinariam? Quem seria capaz de nos dar esta resposta? Após a sua morte, tudo tenderia a voltar ao normal, para o bem ou para o mal, porém, um grande espaço de tempo seria necessário. E quem estaria disposto a esperar? O oriental dizia essas palavras de costas para a porta. As luzes do dia avançavam para dentro do estabelecimento, criando uma aura de mistério. Mas o odor de aves e outros temperos fariam a todos se lembrarem onde realmente estavam. Mas disse oitavo filho, do sétimo filho? E contou-me de o sétimo filho do sétimo filho? Não estou entendendo. Isso me parece história de algum álbum de Heavy Metal... Dizia o jovem, ainda cutucando o balcão. O oriental prosseguiu. Seu pai foi o sétimo filho do sétimo filho. Mas em toda a história da humanidade, exceto por uma única vez, ninguém ousou deixar que a história nos contasse o que se daria depois disso. Foram séculos e séculos esperando que isso ocorresse. As escrituras apontam para milhares de mortes de primogênitos; a mais recente, de doi mil anos atrás, chegou ao sexto filho do sétimo filho, mas quis o destino que isso se alterasse. O último sétimo filho do sétimo filho nasceu pobre, lutou sem armas contra uma nação, foi perseguido e morreu crucificado numa árvore, ao lado de dois ladrões. Sua história é contada até os dias de hoje. 

O oriental avançava com a história enquanto a testa do jovem seguia cada vez mais franzida. Seu avô, dizia, ao ver seu filho nascer não pensou meia vez e matou sua avó, ainda quando o bebê saía de sua pélvis, pois, está dito que para retroceder a maldição, deve o pai matar a mãe do Messias ou do Demônio. E assim seu pai cresceu e quando soube da maldição, contada pelo pai, já era tarde, pois você já residia no ventre de sua mãe. Se seu pai não tivesse um primogênito a maldição teria seu fim e o destino fatal buscaria outra família. E então você nasceu e seu pai hesitou. Sua mãe era uma pessoa muito feliz com a maternidade, embora solitária. Seu pai então consultou os mais altos guardiões dos saberes e entendeu que você seria o sétimo filho do sétimo filho. Mas existem muitos guardiões espalhados pela Terra. Muitos interessados na continuidade da maldição, outros não. E seu pai era um deles. Ele temia por você; ele temia pela humanidade. Está dito também que para retroceder a maldição, o sétimo filho do sétimo filho, em não desejando matar o primogênito, mas morrer em seu nome encerraria aquele ciclo maldito. 

Nesse ínterim, meu caro, sua mãe morreu vitimada por uma doença da alma e seu pai, sem esposa e com um bebê no colo, hesitou novamente. Mas o tempo era curto. E foi chegada a hora. Seu pai reuniu todos os guardiões dos saberes da região e de outros rincões da Terra e decidiu que ele é quem deveria morrer, mesmo sabendo que você cresceria sem pai e sem mãe; essa seria a sua maldição. E tudo em torno do número 8. Sempre 8 passos à frente para acabar com a maldição do 7. E preparou tudo. Na noite anterior à sua morte definiu os detalhes; reuniram-se numa fazenda longe daqui: sua tutora, seus professores, o jardineiro, os seguranças e, posteriormente, a polícia e a imprensa. Todos devidamente avisados para que sua morte fosse esquecida. Você? Indagou o jovem. Sim, sim. Eu também sou um dos guardiões dos saberes. E por isso estou contando a você a história de sua vida. Agora você está livre. Dizia isso enquanto reabria as portas do comércio, provocando novo alvoroço entre as aves. Em seguida ouviu-se o veículo parado a porta dar partida; o jovem seguia seu caminho, desta vez, de volta à casa. 

O jovem não sabia o que pensar. Se era tudo verdade, ou lenda. O sétimo filho já nascido, não tem conhecimento de seus poderes. Sofre com sonhos infinitos, o que demonstra o começo de seus poderes. Seus poderes de clarividência começam a se manifestar através dos sonhos, mas isso, para quem desconhece as razões é como um pesadelo. É difícil de compreender. Com medo de cair no sono, no caso do sonho começar de novo, o sétimo filho do sétimo filho não dorme.

 E havia oito anos o infante não dormia.

*** Agradeço as importantes contribuições de Fernanda Fonseca na composição do material.
Muito brigado!